Mudança de maré
12 Agosto, 2024
Mudança de maré (Sea change na versão original) substantivo. 1. arcaico: uma mudança provocada pelo mar. 2. uma transformação profunda ou notável.
T. S. Eliot, J. Alfred Prufrock, mediu a sua vida com colheres de café. Uma unidade de tempo adequada para um citadino solitário, sem dúvida. Mas quando se trata de quantificar o meu verão em Portugal, uma unidade alternativa e mais convivial é mais adequada: copos de vinho.
Houve copos de vinho da Herdade do Mouchão durante a vindima alentejana, com as solas dos pés manchadas de pisar as uvas acabadas de colher. Ou os brancos vulcânicos do Pico, com o seu fumo e salinidade a falarem dos ventos e erupções atlânticas que moldaram esta ilha açoriana, onde as vinhas autóctones de Verdelho são embaladas em socalcos de basalto negro. Ou nas profundezas do Vale do Douro, gotas preciosas de portos tawny raros servidos diretamente da barrica por Cristiano Van Zeller (o mais antigo datava de 1860, o ano em que Abraham Lincoln foi eleito). Ao longo desses meses, forjaram-se amizades, galvanizaram-se planos, confessaram-se receios, restauraram-se esperanças – inevitavelmente, através do vinho.
Pelo menos havia um sofá macio de veludo para me afundar enquanto a verdade se cristalizava. O futuro imaginado evaporou-se naquele clima climatizado. O lustre, demasiado brilhante, parecia pressionar todo o seu peso sobre o meu peito. O átrio do hotel em mármore pareceu-me de repente um mausoléu. E, certamente, eu estava a morrer, não estava?
Só que, dois dias depois, lá estava eu, a entrar na Estação de São Bento, no Porto, a caminhar por baixo dos imponentes arcos de ferro da Ponte Dom Luís, a inalar a brisa salgada do Atlântico ao longo da marginal de Vila Nova de Gaia. Sabe-se lá por que razão escolhi apanhar o comboio para norte – talvez uma necessidade de me manter em movimento, ou porque nunca tinha estado nesta cidade em particular, ou simplesmente pelo facto de agora poder ir a qualquer lado e a qualquer hora sem dizer a ninguém. Por isso, andei. Passei por casas pintadas com riscas de arco-íris ou cobertas de azulejos da cor do pastel da nata.
À porta de um restaurante, uma mulher atirava lulas para as brasas com uma ferocidade impressionante, fazendo uma careta ao calor cintilante.
Puxei uma cadeira de plástico, pedi sardinhas, que chegaram grelhadas com rodelas de limão, uma salada de tomate suculentos e maduros e batatas cozidas a nadar em manteiga de alho. E o vinho, menina? Sim, que boa ideia. A garrafa de vinho verde, muito fresco e crepitante, cortou o efeito da pele do peixe cor de carvão e com crostas de sal. Virei a cara para o céu, azul como um azulejo, e, pela primeira vez em dias, sorri. Tudo ia ficar bem.
Porque se eu conseguisse ficar contente ali, naquele momento, então a felicidade poderia acontecer outra vez, outra vez e outra vez.
Quinze meses depois, voltei a voar de Londres para Lisboa. Só que, desta vez, acompanhada por uma amiga querida e com um objetivo muito diferente: desfrutar.
Eis o que me lembro. Transportar copos do espumante da Bairrada, cor de salmão, de João Pato, para a Praça das Flores ao anoitecer, enquanto um saxofonista tocava junto ao chafariz e todos se observam mutuamente circulando naquele dia de ar quente e abafado. Escolhemos vinhos, sem pudor, pela peculiaridade dos seus rótulos – talvez um javali (Crazy Javali) ou uma caveira e ossos cruzados (Pirata da viúva) ou uma freira (Il Ceo). E, como londrinas, ficámos surpreendidas com o facto de os bares de vinho portugueses nos deixarem provar quatro ou cinco variedades diferentes antes de escolhermos a que queríamos – que hospitalidade!
Dirijo-me a uma marisqueira em Famalicão, Nazaré para provar os percebes pela primeira vez.
Produto de uma apanha perigosa (os pescadores escalam penhascos íngremes com cordas para chegar aos percebes), a sua aparência é parte garra de dinossauro, parte perna de elefante. Os meus companheiros – um grupo heterogéneo composto por um ator, um viticultor e um designer – demonstram como se arranca a parte superior da concha e se retiram as lascas de carne semelhantes a amêijoas. Apesar de ser desagradável ao olhar, o sabor e o cheiro é a mar. Abre-se uma garrafa de Van Zellers & Co VZ Douro Branco 2017. As travessas de ostras e mexilhões não param de chegar. O nome, dizem-me, pronuncia-se per-se-besh, que também significa “Ele/ela compreende”. Bem, eu estava a começar a perceber.
Jantar debaixo dos limoeiros do Paço da Glória, uma casa senhorial no Minho. A cera a acumular-se à volta das velas e as garrafas de vinho vazias a estampar formas arredondadas cor-de-rosa na toalha de linho, enquanto eu falava com um grupo de estranhos sobre o luto – Não é que ele surge em momentos tão estranhos e inesperados? E não é sombrio quando se tinha uma relação difícil com a pessoa que faleceu? É uma alegria poder dizer coisas que a minha própria família, limitada pela famosa reserva britânica, não aceitaria à mesa de jantar.
Mergulhar no porto de Sines para explorar a adega subaquática da Ecoalga. Pequenas criaturas marinhas deixaram as suas rendas sobre as garrafas. Aparentemente, os vinhos envelhecem mais depressa aqui em baixo do que em terra firme, suavemente embalados pela corrente nas profundezas frias e escuras. Uma frase vem-me à cabeça: mudança de maré . A primeira menção registada é na “A Tempestade”, de Shakespeare, (tradução livre) “Nada do que se desvanece, mas sofre uma mudança de maré, em algo rico e estranho.” A Canção de Ariel é sobre um rei que se afoga, mas a expressão passou a significar uma mudança provocada pelo mar, ou mais amplamente, uma transformação profunda ou notável de qualquer tipo. De volta à superfície, balançando nas ondas verde-acinzentadas, estico bem os dedos, já não me agarro a coisas quebradas como uma alma náufraga. Há algum alívio, afinal, em libertar-se, em estar à deriva, sozinho. Coisas preciosas foram arrancadas das minhas mãos; deixo-as assentar no fundo do mar como um baú de tesouro.
Muitas das pessoas que conheci em Portugal tinham passado pelas suas próprias mudanças de maré. A advogada que se tornou numa queijeira premiada, Joana Garcia. Um ex-mergulhador que aprendeu a ser doula de fim de vida. Todas as mulheres que um dia decidiram mudar-se da África do Sul, da Austrália ou do Brasil para este canto da Europa – porque quiseram, porque puderam.
Claro que esses meses também tiveram pontos baixos. E não vou sentir falta de ser expulso da cama todas as manhãs pelo som de perfurações e pelo calor sufocante – sem dormir, com a cabeça a latejar, a garganta seca – porque o nosso apartamento no terceiro andar, apesar de todas as suas estantes de livros e azulejos antigos e da sua invejável localização no Príncipe Real, era uma verdadeira fornalha e dava para um estaleiro de obras.
Mas, acima de tudo, aquele verão foi uma série de momentos dourados e de vidro. Tomei o meu remédio – o riso, a luz do sol, o vinho – e senti-me mais corajosa do que antes.